Cortei meu cabelo recentemente. Passados alguns meses ainda me estranho no espelho. Uma amiga em tratamento quimioterápico mobilizou (sem saber) a iniciativa de alguns familiares e amigos mais próximos à contribuição com a campanha de voluntários para confecção de perucas, com cortes ousados em suas cabeças. Este corte rendeu muitos fios, mas rende também algumas linhas de reflexão interessantes
Depois de uma série de comentários inquietantes: simpáticos, encorajadores, parabenizantes e dignos de inspiração para mudança ou ainda de lamento, crítica, indignação ou reprovação pelo corte, fico pensando como este ato de mudança no visual afeta cada um de nós em suas realidades. Não se trata de julgar aqui as preferências estéticas e fantasias de cada um. Convido à crítica da resistência para o novo.
Quando se tem uma demanda de amor muito grande, carecemos de elogios tradicionais ou de manifestações que atendam nossas expectativas. Quando trabalhamos nossa afetividade, deixamos de esperar muito do conservador e acabamos por “decidir” nos inquietar com outras coisas que passam a ter mais valor, como com o que vivenciamos em nossas experiências de corte. Sim, porque podemos escolher um novo corte de cabelo, mas às vezes não.
Certamente me identifiquei com o modelo de longas madeixas clássicas desde cedo e embora sejamos fruto de nossas vilas brasileiras de raizes românticas coloniais, podemos buscar novos mestres em uma cultura que possa estar em transição, por exemplo, de não aceitarmos uma ditadura da moda.
Hoje temos visto mulheres desapegadas de um cabelão assumirem a experiência da novidade, do enfrentamento, saindo de seus castelos e indo para a rua pedir uma experiência fantástica de corte daquilo que lhes pesa no cocuruto. Estamos criando coragem para sermos diferentes na vida estética, ética e política, mas como custa ser diferente ainda que na aparência.
A inovação pode sair mais em conta quando partimos para o descobrimento de nossa identidade, e nossa imagem passa a nos agradar quando assumimos a digna oportunidade de enfrentar as ameaças fantasiosas ou reais de perda. Para isso, meus caros, vale muito a pena pagar pela própria análise pessoal.
Provável que o mais forte personagem do Antigo Testamento, não tenha tido essa chance. O famoso Sansão, em sua lenda, perde a força para enfrentar seus inimigos quando seus cabelos são cortados por sua amada. Diferente de Sansão, não precisamos enfrentar as adversidades como se fossem leões e inimigos para serem mortos. E o oposto também pode ser verdadeiro: é cortando os cabelos que ganhamos força.
Quando nossos cabelos crescerem de novo, lentamente, talvez comecemos a perceber que ganhamos forças justamente nesse tempo mais contemporâneo que antigo, em que sabemos acolher os cortes que nos chegam. O sentimento inquietante de vivenciar um corte na vida pode ser angustiante, especialmente se temos a ilusão infantil de controlar as experiências que nos chegam.
Diante das tragédias cotidianas, a beleza em acolher os fatos pode estar justamente no exercício de busca de um sentido para a vida, de orientação e de afetividade no que fazemos acontecer. Talvez seja preciso se solidarizar com suas próprias causas para ser capaz de se solidarizar com os outros (em) nós. Questões para se trabalhar em nossas análises pessoais.
Mesmo nesta civilização repleta de mal-estar, minha amiga (a quem eu me solidarizei), de fita em sua cabeça linda e sem cabelos, retribuiu os laços de carinho com uma visita alegre e bem-humorada. Nada mais belo que isso.
Autora:
Elise Alves dos Santos – CRP 09-4759
Psicóloga e psicanalista
Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura (UnB)
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